O Vírus da Invisibilidade


     As imagens são do trem que vai para Japeri, no dia 30 de abril de 2021, no horário de pico. Mostram o trem tão lotado quanto sempre foi. As medidas de contenção não haviam alcançado, até aquela data, os mais pobres de uma das cidades com maior mortalidade do país. Exatamente - e (in)justamente - aqueles que não puderam parar para que todos os demais pudessem ficar, protegidos, em casa.

     Eu não poderia passar esta pandemia sem me tornar este testemunho histórico de um dos mais flagrantes sinais de que nós, do mundo civilizado, de direita ou de esquerda, qualquer que seja a nossa religião, não temos a menor preocupação com a morte de pessoas que não conhecemos pelo nome, principalmente quando temos a esperança de que aquele tipo de morte nunca baterá às nossas portas. Logo, logo, dirão que é mentira que, no auge de uma pandemia, tantas pessoas de algumas das áreas mais carentes de um dos estados mais atingidos pela pandemia, ainda ficavam trancadas e empilhadas, por pelo menos 90 minutos, todos os dias, duas vezes por dia, numa das conduções que as levavam para o trabalho. Trabalho este que viabilizava a permanência segura, em seus lares, de todos os demais profissionais do país.

      Por isso, naquele dia 30, como não consegui lugar no ônibus que vai direto do Rio para Miguel Pereira, que sai da rodoviária, decidi ir de trem, em pleno horário de pico.

     Quando cheguei a Japeri, precisei pegar outro ônibus para o meu destino final (Miguel Pereira). Uma senhora, "dona Rosa", que certamente já beirava os 60 anos de idade, dizia para os seus vizinhos de fila que havia saído de casa às 5h. Eram mais de 20h e ela acabara de entrar na fila para pegar a última condução antes de, finalmente, chegar em casa. Uma fila enorme. E tudo indicava que ela iria em pé, num ônibus cuja passagem custava R$14,00. 

     Ela, rindo, dizia que a sua sina era mesmo "viver em pé": em pé no trem, em pé no ônibus, em pé na fila... (foi quando ela parou para pensar um pouco no que havia acabado de dizer e, ainda bem humorada, continuou...) em pé na tábua de passar roupa, no fogão, na limpeza da casa...

    Quase metade do tempo que ela passava fora de casa, ela passava no transporte. Da sua casa a Japeri, de Japeri à Central e da Central, finalmente, ao seu trabalho.

    No meio do caminho, o trem passa por algumas das áreas mais pobres do Rio. De Queimados ao Méier, passando por Nova Iguaçu, Nilópolis e Mesquita. 

    Não tinha problema ela ir entulhada por mais de uma hora e meia no trem porque o vírus que ela carrega é inofensivo. Ficar em uma condução aglomerada com outras milhares de pessoas de várias das maiores concentrações urbanas do estado e do país, por um tempo tão grande, não parecia arriscado o suficiente para que a medida de contenção mais importante e urgente da pandemia fosse tornar o transporte público digno.

    O vírus que ela carrega é o vírus da in-vi-si-bi-li-da-de. E a pandemia de invisíveis sempre existiu e nenhum de nós, que corretamente se mantém em casa graças aos serviços essenciais prestados por eles, jamais se importou o suficiente com isso. 

     A COVID é um mal terrível. Matou pelo menos 3 milhões de pessoas em apenas um ano. Dona Rosa, o tempo todo de máscara, como a maior parte dos passageiros do trem, faz o que pode para se defender. Mas, anualmente, 8 milhões de pessoas que contraem o mesmo vírus logo ao nascerem desenvolvem a doença da invisibilidade e morrem por razões ligadas à fome. Uma "doença" que se cura com um remédio que todos conhecemos e que, infelizmente, está em falta nas drogarias, cujo nome genérico é "solidariedade".


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