A morte da lagarta.

 


No meu quintal havia um pé de maracujá . 

O pé de maracujá é uma trepadeira e cresce muito rápido. 

Talvez por crescer muito rápido, é bem comum encontrarmos muitas lagartas devorando suas folhas. É uma luta épica entre dois seres que se espalham pelo ambiente como se fossem pragas.


A flor do maracujá é linda. E o maracujá, delicioso.

Para proteger a safra de maracujás, dona Evelice me recomendou matar as lagartas.

De início, eu retirava as lagartas (pelo menos uma dezena de cada vez) e as colocava em outra parte do quintal para não ter que matá-las. Afinal de contas, elas estavam somente se alimentando.

Com o tempo, percebi que a minha iniciativa de proteger a planta era inútil, uma vez que algumas lagartas voltavam para o pé de maracujá, enquanto outras cresciam comendo outras folhas e todas as que sobrevivessem iriam se transformar em borboletas, que poriam seus ovos no pé de maracujá.


Dona Evelice tinha razão. Eu tinha que matar as lagartas!

E assim o fiz durante um bom tempo.

Num certo dia, encantado com as borboletas que voavam pelo quintal, percebi que, para ser efetivo, eu teria que eliminar as borboletas também!


Comentei sobre o assunto com a Dona Evelice e ela me olhou como se eu fosse o próprio Hitler. “Matar borboletas?! Que coisa horrível!”


Mas, por que era horrível matar borboletas e não era horrível matar lagartas?

Esta pergunta eu não fiz para Dona Evelice. Eu fiz para mim mesmo quando tentei matar uma borboleta e não consegui.

E não consegui não porque a borboleta era inocente (uma vez que a lagarta também era).

Embora certamente houvesse dolo, não sentia culpa no meu ato de matar a lagarta. Eu as matava simplesmente porque, se não o fizesse, perderia o meu pé de maracujá.


Matar uma borboleta que ronda o pé de maracujá poderia ser ainda mais efetivo, porque uma única borboleta pode por centenas de ovos. Mas eu me sentiria mal em fazer isso, mesmo tendo certeza de que as borboletas por mim condenadas iriam pôr seus ovos mais cedo ou mais tarde na trepadeira.


A razão era clara: a borboleta atendia ao padrão de beleza que me haviam ensinado desde pequeno. A lagarta, não.


A borboleta era ágil, leve, sublime.

A lagarta,  lenta, pesada, depressiva.


Era muito mais fácil matar lagarta por lagarta do que matar uma única borboleta com uma centena de futuras lagartas dentro.


Até o título deste texto soaria completamente diferente se, em lugar de “A morte da lagarta”, fosse “A morte da borboleta”.


Parte 2


Aos três anos de idade, a criança já ouve da mãe: “Não faça isso porque é feio!”

Já para aquela jovem que teve uma morte prematura, normalmente ouvimos: “Que pena... Morreu tão cedo… Ela era tão bonita!”

E, em vez de “necessário”, ou “abnegado”, elogiamos a dedicação daquele religioso dizendo que  “Ele faz um belo trabalho com os desamparados.”


Frases assim são só alguns poucos exemplos de como o belo se confunde com o bom a ponto de o senso comum ser facilmente incapaz de distinguir uma coisa da outra, até porque normalmente sequer nos damos conta de que essa distinção é necessária. 


A confusão entre belo e certo - ou entre o feio e o mau - está tão mesclada com a cultura da nossa sociedade que poucos de nós se dão conta dos problemas que ela pode causar. Isso pode estar relacionado com o fato de colocarmos o ser humano como centro das atenções de Deus, que nos mimou criando coisas "bonitas" para vermos, o que sugere que as coisas que nos parecem feias não sejam divinas. Mas não estudei o suficiente para discutir as razões disso, ou se isso é um defeito só da cultura influenciada pela catequese cristã, ou se é um defeito do ser humano, qualquer que seja a sua origem. Vou tentar fazer o que me parece menos complicado que é "mostrar o problema e sugerir um caminho para resolvê-lo".



E, sim, poderia ser só uma questão de pobreza vocabular. Mas, para que ninguém diga que eu só estou me prendendo a palavras, apesar de ter iniciado este texto com o exemplo da lagarta, parece bem incontestável que é muito mais fácil lutar contra a extinção dos pandas, ou micos-leões dourados, do que arrecadar dinheiro para defender a preservação de ratos, lesmas ou mesmo bactérias. É muito mais fácil defender a preservação de uma praia do que evitar o fim de um mangue. Muitos dos organismos e ecossistemas mais importantes para a vida na Terra - e por vezes mais ameaçados -  não parecerão bonitos para quem não os conhece na intimidade. E, se não são bonitos, não devem no rol das coisas divinas. Logo, para que o esforço em preservá-los? 


“Ser bonito” não tem qualquer vinculação com ser correto, pertinente, divino ou sustentável. É bastante óbvio que são conceitos completamente diferentes, assim como seus opostos. Ser feio, portanto, não significa ser mau, errado ou demoníaco. Mesmo assim, não agimos como se entendêssemos essa distinção.


Além disso, por não termos o menor controle sobre os critérios que nos fazem discernir entre o que nos parece belo e o que classificamos como feio, não percebemos o erro e o comportamento padrão se repete indefinidamente. Nós iremos dizer à criança que o que ela fez foi feio (em vez de errado) e iremos empregar ou utilizar os serviços de pessoas que nos pareçam mais belas mesmo que, em alguns casos, não sejam suficientemente capazes, competentes ou qualificadas para as tarefas que precisam desempenhar. Iremos priorizar a beleza em detrimento do conforto e da coerência, por vezes, usando roupas extremamente incômodas ou nos submetendo a procedimentos extremamente dolorosos e muitas vezes perigosos. Iremos escolher a namorada ou o marido pela foto, muito mais do que por suas palavras, ações ou sentimentos. 


Por último, somos muito carentes de aceitação por parte do grupo social em que vivemos. E, como a confusão entre os conceitos já está quase que soldada aos aminoácidos do nosso DNA, nós crescemos sedentos por beleza, como vampiros. Isso faz com que pessoas que queiram ou precisem nos manipular acabem tendo uma arma muito poderosa em suas mãos. Da conquista na balada ao comercial do produto de beleza, passando pela pessoa famosa que o político escolhe para veicular suas ideias, de forma premeditada ou não, todos tentarão usar a beleza para nos convencer, muito mais do que argumentos. E ficaremos ali, com nossa carência sangrando diante delas, às vezes com aquela esperança, que para nós mesmos soa como absurda, de que “alguma coisa vai rolar” ou de que algum dia seremos tão belos e aceitos quanto elas. Seja com o astro de rock, com a professora ou com a modelo do comercial de TV. 

 

Boa aparência lembra sucesso, fortuna e aceitação. Mas estamos tão acostumados a atrelar uma coisa a outra, que, não raro, o efeito não será só o da mera lembrança; iremos efetivamente sobrepor um conceito ao outro. 


Quando damos uma festa, muitas vezes impomos como os nossos convidados devem se vestir, mesmo sendo pessoas da nossa intimidade, que conhecemos e amamos, por vezes, há décadas. Se a pessoa espera que você vá de terno e você aparece de camisa pólo, o seu ato soa como uma ofensa do quilate de uma traição. Este poço é tão fundo que, por exemplo, promotores e juízes impõem a eles mesmos normas sobre quais roupas podem usar em local de trabalho*. A aparência é tão importante que não se arriscam a confiar no bom senso dos seus pares. E isso é um tanto desesperador porque é desse mesmo bom senso, dessas mesmas pessoas, que dependemos todos, uma vez que é a elas que conferimos o sagrado dever de avaliar e decidir quem está certo e quem está errado, e qual destino reservar a ambos.  


E não me entenda mal, por favor. É bem agradável morar num ambiente bonito, colocar uma bela roupa e estar entre pessoas lindas. O cerne da questão talvez resida no fato de que os parâmetros que nos fazem discernir entre o que é bom e o que é mau são muito mais conscientes e confiáveis do que aqueles que nos fazem discernir entre o que é belo e feio. Veja o caso dos advogados nos tribunais de justiça, por exemplo. Existe um verdadeiro abismo lógico entre o que é “bom”, ou até mesmo “coerente”, e usar terno e gravata no alto verão do Rio de Janeiro. O “belo”, neste caso, claramente se mostra muito mais importante que o “pertinente”.  


E é fundamental lembrar todos os dias, de manhã e de noite, como se fosse um mantra, que a beleza NÃO é absoluta. A pessoa que, por exemplo, dedica a sua vida para estudar os diversos tipos de lagartas que existem e como elas vivem vai certamente achá-las incrivelmente lindas e, se necessário, terá tanta ou mais dificuldade de matar o animal na fase lagarta do que depois que ele se transforma numa borboleta. O problema aparece quando, de forma irrefletida e no calor dos inúmeros julgamentos que fazemos a todo instante, acreditamos que esses parâmetros são absolutos. 


Sendo mais claro, NENHUM padrão de beleza é melhor que o outro. A beleza é um conceito que brota da vivência e da cultura de cada um. Ela carece de intimidade. E “intimidade” pode decorrer de um conhecimento profundo que se adquire, ou com a convivência, no caso de uma mãe com seu filho, ou com o estudo, como o caso do cientista que se dedica a pesquisar lagartas. Mas a intimidade (ou a ilusão dela) também pode surgir a partir da mera exposição - prolongada, reiterada e normalmente não solicitada -, como fazem todos os diversos poderes constituídos - como o governo e a grande mídia - com as músicas, símbolos, artistas ou produtos que desejam vender. Ou ainda quando somos expostos a normas (formais ou informais) que nos obrigam ou compelem a agir segundo certos padrões; é o caso das vestimentas formalmente impostas nos tribunais de justiça ou informalmente impostas em quase todos os demais ambientes da sociedade, desde festas até locais de trabalho.


E por que é tão importante desenvolver maneiras eficientes de identificar quando estamos avaliando pessoas, normas e atos por quão belos e, não, por quão certos eles nos parecem? 


Primeiro porque o conceito de bom, ou de certo, em geral, é muito menos relativo e volátil que o conceito de belo. Se tratarmos o belo como se fosse bom, vamos também rejeitar o que nos parece feio como se mau, ou ilegal, ele fosse.


Segundo, porque, como já foi dito, por ser um ponto fraco nosso, pessoas que querem nos convencer farão de tudo para atingi-lo. E o problema não é exatamente o fato de termos um ponto fraco. O problema é vivermos sem sequer saber que ele existe. 


Terceiro, porque é um erro muito recorrente. Ingênuo à primeira vista, mas que, não raro, nos leva a defender ou reprovar pessoas, normas, comportamentos e iniciativas a ponto de impactarmos negativamente o futuro de grupos de pessoas, de nações, de ecossistemas e até mesmo de toda a humanidade.


Exemplos não faltam. Desde o momento em que escolhemos cuidar dos animais que nos parecem mais belos em detrimento de um sem número de espécies de seres vivos muito mais importantes para a sustentabilidade do planeta, até o momento em que nos importamos mais com a guerra que mata crianças europeias do que com aquela que mata crianças africanas. 


Também é importante destacar que você não tem que começar a achar bonito o que para você é feio, nem o contrário! Se você acha lindo alisar cabelo e usar um terninho, pode continuar assim; da mesma forma que quem gosta de usar calça rasgada e dread. E se achar bonito usar um dread com terninho, também pode! O que não pode é, apenas pela aparência, acreditar que vestida de uma das formas apresentadas estará uma pessoa mais correta, mais amável ou mais confiável que as demais. 


Eu acredito que o mais importante seja realmente a pessoa se convencer de que esta confusão acontece com muita frequência. E, para isso, não tem jeito: é parar e observar, principalmente a si mesmo. Mesmo que eu fosse um phD e listasse um milhão de trabalhos científicos sobre o assunto, isso de nada valeria se esse dever de casa não fosse feito. Depois, é reconhecer que são graves os impactos que estes erros reiterados e aparentemente inócuos têm sobre as decisões que tomamos. Por fim, o próximo passo é criar estratégias para identificar os momentos em que estamos confundindo o belo com o bom, assim como o hábito de empregar as estratégias criadas. E, sim, é claro que seria ótimo que as crianças, já na escola, fossem treinadas para fazer isso desde cedo. O problema é que a criança é treinada por um adulto. E, se o adulto não considerar que esta mudança comportamental é importante, dificilmente os seus filhos ou alunos conseguirão fazer muito diferente e o ciclo vicioso continuará se perpetuando. 


Apesar de ser assunto para outro texto, bem longe dos heróis e mártires, são pequenas mudanças como esta -  e talvez as únicas - que podem mudar de forma sustentável o mundo em que vivemos. Basta que sejam executadas reiteradamente, por muito tempo e por um número suficientemente grande de pessoas. 


Parte 3


Estamos quase todos definitivamente capturados - tanto as borboletas quanto os seres humanos - por esta armadilha que, de tão antiga, nem sabemos ao certo como ou quando caímos nela. Para muito além das lagartas que sobrevivem, quando conseguem, esquecidas, solitárias e por sua própria conta, padecem de um mal parecido, por exemplo, grande parte das crianças africanas. Elas morrem de fome ou de doenças já há muito erradicadas entre as borboletas que voam pelos quintais das nações desenvolvidas. Nações essas que, há séculos, devoram, como se ainda fossem lagartas, os recursos naturais daquele continente. 


Em tempo, um outro vizinho meu, depois que o meu pé de maracujá morreu, me revelou que eu não precisava matar as lagartas nem as borboletas. Bastaria colocar cascas de ovos penduradas pela trepadeira. Segundo ele, os animais não põem ovos onde há animais que põem ovos maiores que os seus.

Não tive tempo de testar esta teoria. 


*Existem normas que determinam como os advogados devem se vestir: https://www.conjur.com.br/2021-fev-03/tj-rj-libera-advogados-usar-terno-gravata-fim-verao 

Na verdade, é um pouco pior que isso, porque é preciso uma norma formal para permitir as pessoas usarem o óbvio, ou seja, roupas mais leves no verão do RJ.  


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