Money Monster

 


Acabei de rever o filme "Money Monster" ("Jogo do Dinheiro", no Brasil), de 2016, com Julia Roberts, Jack O'Connell e George Clooney; direção de Jodie Foster.

A trama envolve um apresentador de um programa de TV que faz recomendações sobre investimentos e uma dessas recomendações redundou num prejuízo de 800 milhões de dólares às pessoas que adquiriram as ações recomendadas. A empresa responsável atribuiu a perda a um "erro desconhecido no algoritmo". O personagem principal (Jack O'Connell), que havia perdido todas as economias de sua família, invade o estúdio, coloca uma bomba no apresentador e exige explicações.

Nada muito extraordinário, exceto, a meu ver, pela dinâmica do filme, que prendeu completamente a minha atenção e o cuidado na construção do argumento.

Mas o que me traz aqui não é o filme em si, visto que eu não sou crítico de cinema, nem tenho a intenção de me transformar em um. Os personagens, na busca por respostas, descobrem que a verdadeira razão do prejuízo não tinha sido uma "falha desconhecida no algoritmo" e, sim, uma fraude do dono da empresa, que usara o dinheiro para financiar uma greve na África a fim de comprar ações em baixa para revendê-las logo depois. Como o plano acabou não dando certo, ele acabou perdendo todo o dinheiro dos "investidores".

Quando todos descobrimos o que finalmente tinha acontecido, o personagem principal exige uma retratação do CEO da empresa, que foi quem arquitetou e executou a fraude, e, aí sim, vem a frase que me trouxe aqui. O CEO responde que (com minhas palavras) "as pessoas nunca perguntam a ele o que ele fez com o dinheiro quando o negócio dá certo e elas ganham. Elas só se incomodam com a lisura dos negócios quando elas perdem."


Essa reflexão valeu muito mais do que o filme, que, mesmo sem ela, já seria bastante bom.

As pessoas que usam a bolsa de valores literalmente como cassino não estão interessadas em saber o que está por trás daquela ação que elas estão comprando por 15 minutos ou alguns dias. Se ela irá lhes trazer lucro porque usa energia renovável ou porque está fomentando uma guerra que dizima toda uma etnia africana. O que importa mesmo é ganhar dinheiro de forma mais rápida e se sentir mais esperto que os outros que se utilizam de métodos mais ortodoxos. A pergunta sobre se "isto é certo ou isto é errado" - e toda indignação que dela segue - só eclode mesmo quando algo dá muito errado pra muita gente ou para quem tem muito poder.

Note que eu não falei em "ser legal" ou "ser ilegal". Falei em algo mais básico, que são as noções de "certo" e "errado". Isso porque legalidade não tem necessariamente uma vinculação com o que é correto. Não raro, bem longe disso, legalidade está ligada a "poder". Boa parte das coisas feitas dentro e fora das bolsas de valores são perfeitamente legais e, sob análise de qualquer pessoa minimamente isenta, irão soar como claramente erradas. Isso é bem óbvio quando pensamos que a escravidão e o nazismo foram legais por muito tempo. Mas é bem fácil achar exemplos de coisas legais que, ainda hoje, no ocidente, são claramente erradas, pelo menos para quem não se beneficia delas. 


E percebam que essa opção que fazemos por olhar apenas para o lucro que teremos, a ponto de ignorar qualquer reflexão moral sobre o que se está fomentando com aquela ação, buscando, quando muito, amparo apenas na legalidade, não é uma patologia só dos apostadores das bolsas de valores. As pessoas com poder acessam um mar de possibilidades de, ou contornar a lei, ou mesmo alterá-la para tornar legal algo que, até pouco tempo atrás, não era, ou o contrário, com o objetivo de fazer valer os seus interesses, ignorando por completo os problemas causados por aquelas iniciativas. Estamos falando de grandes corporações e de pessoas ou órgãos que fazem as normas ou que têm poder sobre as pessoas que as elaboram. Mas, mesmo entre pessoas comuns, que não podem manipular ou desviar da lei, não será difícil encontrar situações em que, diante da possibilidade de um lucro substancial, fazemos questão de não olhar para as causas com medo de enxergar, por trás delas, uma ação ilegal.   


Descendo bastante na cadeia alimentar, quando recebemos uma promoção que nos interesse no celular, ou no mercado, ou na TV, em geral, corremos para aproveitá-la, mesmo que ela soe boa demais. O único momento de reflexão que temos - quando temos - é sobre se nós não estamos correndo o risco de perder, em lugar de ganhar, por estarmos sendo ludibriados por alguém mais esperto que nós através de um "golpe". Em momento algum passa pela nossa cabeça a ideia de que aquela carne pela metade do preço não veio de uma carga roubada, ou se aquele desconto absurdo que recebemos no Uber não está ajudando a eliminar a concorrência e a aumentar o poder de uma única empresa sobre todas as pessoas que trabalham para ela a fim de se submeterem às condições que ela impõe.

E eu poderia seguir com uma extensa lista de exemplos de coisas aparentemente ingênuas que fazemos (uns muito mais, outros muito menos) pensando apenas no lucro e no nosso bem estar. A lista passaria, claro, por consumir produtos que torturam animais, ou que agridem o meio ambiente, ou que são produzidos por pessoas em outras partes do planeta em condições que, sob nossos paradigmas, são análogas ao trabalho escravo. Tudo perfeitamente legal. Opções que fazemos utilizando o lucro cintilante como praticamente o único peso. E, para cada uma desses exemplos, teríamos uma série decorada de bons argumentos, desde o óbvio, que "era legal", até o "era por necessidade", passando por "não tenho tempo para examinar toda a cadeia de produção de tudo que consumo antes de comprar" e, até mesmo, "se eu não comprasse, outra pessoa o faria".

E nenhuma dessas justificativas é totalmente sem sentido.

O que eu queria pontuar é que, lembrando daquela empresa "fictícia" que desviou aqueles 800 milhões de dólares no filme para, através de atividades consensualmente erradas, alavancar um aumento sensacional no valor de certo grupo de ações, a mola propulsora que é capaz de promover aquele desvio está presente no cotidiano de pessoas com muito poder, com pouco e até com aparentemente nenhum poder. Todos queremos ver nosso dinheiro de alguma forma multiplicado sem que um grande esforço nosso seja necessário. E, quando não "queremos", não nos incomodamos quando isso acontece. Mas isso não nos iguala. Não dá para equiparar a gravidade do roubo da carga de um caminhão que caiu no meio de uma rodovia com o roubo de uma nação por uma corporação, por um político ou funcionário público.

E este talvez seja o maior dos nossos problemas. A partir de que ponto o que é errado deixa de ser simplesmente errado e passa a ser hediondo? A partir de que ponto o errado passa a ser tão "não tão errado assim" a ponto de, consideradas as circunstâncias limítrofes a que as pessoas são submetidas, ele passa a ser perfeitamente compreensível? 


A linha que separa esses universos certamente é tão difusa que podemos entender como uma faixa. Mas, embora a linha seja difusa, a faixa é bem fácil de identificar. Uma pessoa faminta roubar um pão está de um lado da faixa. Uma pessoa de classe média alta apostar em ações de empresas sem se preocupar com a forma como elas obtêm seus lucros está claramente do outro lado. Um assalariado de baixa renda comprar o alimento para alimentar sua família sem se preocupar com o teor de agrotóxico utilizado, ou com as condições em que os animais foram criados está de um lado da faixa. Uma pessoa de classe média e curso superior eleger um político que ignora - e às vezes se orgulha por ignorar - aqueles problemas está do outro.


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