Isso é para equilibrar.



Domingo, 22 de maio de 2021, 5h50min.
Acordo para ir ao banheiro e percebo, saindo do quarto dele,  um ruído muito estranho... 

Na verdade, antes disso, preciso contar outra coisa... 

Já há alguns anos ele parecia cumprir uma espécie de promessa, que eu chamo de  "Síndrome do Capitão Caverna" (SCV). Ele simplesmente se negava a cortar o cabelo. Como é natural, à medida que o cabelo crescia, os fios se enrolavam e iam se misturando uns aos outros. E ele rotineiramente cumpria a mesma liturgia: esticava um dos fios, parava, avaliava o tamanho e, como se fosse um daqueles pensamentos que atraímos, e pelos quais somos atraídos, às vezes por uma vida inteira, ele, em seguida, tornava a enrolá-los, seguindo, resignado, para o próximo fio.  Ao fim de cada sessão, sua cabeça permanecia ainda mais perdida naquele labirinto que deixava, para quem olhava, a clara e inquietante sensação de que jamais seria desfeito pacificamente. 

Mas, ainda antes disso, eu preciso falar uma outra coisa. Na verdade, uma peculiaridade inerente a ele, muito antes do aparecimento da SCV, principalmente até o início da adolescência. 

Ele não conseguia adequar à temperatura do quarto as roupas (casaco, camisas, calças e lençóis) que utilizava para dormir, principalmente no verão. Não raro, eu tinha que desenterrá-lo debaixo de várias camadas de roupas e cobertas, onde eu o encontrava suando em bicas e em sono (que sempre foi) profundo. 

Ontem, qual não foi a minha surpresa quando, ao chegar em casa, percebi que ele havia - pasmem!- cortado o cabelo! 
(Não era tanto quanto eu sonhava, mas muito mais do que eu esperava.) 

O susto foi tanto que me fez parar para pensar na  minha responsabilidade (possivelmente até genética) sobre aquele comportamento e se eu realmente era tão diferente dele quanto presumia.

Por um lado, eu também sofro de uma espécie de Síndrome do Capitão Caverna.  Mantenho bem emaranhados, às vezes por décadas, problemas, ressentimentos e até  sonhos. E eu os percorro, quase que cotidianamente, - avaliando e mensurando -  esticando-os um a um. Depois torno a enrolá-los, até que individualmente fiquem irreconhecíveis e, como um todo, pareçam muito mais assustadores. 
Por outro, eu também tenho um pouco deste "autismo termométrico". Eu vou me acostumando com o “calor” dos acontecimentos, por exemplo… A diferença é que eu, desde cedo, periodicamente me desenterro. E, de tanto que isso já aconteceu, por mais que a inércia ou o conformismo entortem minhas perspectivas para a posição fetal, o balde de água fria que eu jogo em mim mesmo, embora desconfortável no início, é sempre restaurador e providencial, tirando-me da posição de conforto e abrindo espaço na realidade para que as coisas que realmente fazem diferença aconteçam.  

Voltando aos fatos, após a necessária contextualização, diante daquele ruído extremamente atípico, eu gelei! 
Era um ventilador ligado, numa madrugada considerada fria para o carioca! Ventilador no verão já era algo raro de ver ligado. No inverno, do quarto onde só ele dormia, era completamente impensável. Seria mais um tipo de desajuste térmico com o qual eu ainda não estava acostumado?

Juntei uma coisa com outra e concluí que só tinha uma explicação... 

E como eu não tinha desconfiado daquilo antes?!! 

A única possibilidade razoável era a de que aquele ser vivo de cabelo aparado, dentro daquele quarto, com ventilador ligado, NÃO ERA MEU FILHO. Certamente tinham-no sequestrado e deixado uma espécie de clone em seu lugar. 

Não consegui segurar a minha ansiedade. Com muito cuidado, eu me aproximei daquela forma de vida e perguntei - fingindo acreditar que estava dialogando com o original - se ele estava se sentindo mal.

"Não, pai. Isso é para equilibrar.", respondeu o provável clone. 
"Equilibrar?!" , indaguei atônito, e entendendo menos ainda. 
"É que, como está frio, eu me cubro.
E, quando eu me cubro, eu suo muito. Aí eu ligo o ventilador pra equilibrar.", ele completou, didaticamente, como se fosse a constatação mais óbvia que a mente humana pudesse conceber. 

Aquele curto diálogo, na madrugada do dia 22 de maio de 2021, me deixou ainda mais surpreso. Mas, pelo menos, me ajudou a consolidar a esperança de que aquele espécime era realmente meu filho. Uma cópia, por mais bem feita que fosse, jamais construiria uma justificativa como aquela. 

Relaxei.
Afinal, como dizem, só o dono da casa sabe onde ficam as goteiras. 
Que bom que ele achou um caminho para não fritar sob o calor que as suas próprias cobertas acumulam. 
Que ele encontre muitos outros!




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