Pretos de Verdade


Eu raramente dou importância a troca de palavras. Mas a experiência de assistir ao Nabby falando foi tão produtiva que decidi fazer este (extenso) comentário desta vez.

Quem fala no vídeo é Nabby Clifford, músico, nascido em Gana, pelo que pude apurar.

Percebam que, pelo menos neste vídeo, ele consegue unir, de forma extremamente feliz e agregadora, carisma, gentileza, informação e coerência. Apesar do tema disparar ou potencializar conflitos entre pessoas, ele não aponta culpados. Ele não chama para a briga. Ele não fala com raiva. Ele não levanta uma bandeira. Ele nos convida para conversar como se fosse nos mostrar como o sol se põe de forma particularmente bela num certo cômodo de nossa casa cuja janela nunca abrimos naquele horário.

E esse tipo de abordagem para este assunto, pelo menos no caso do Brasil, faz todo sentido porque:
1) os maiores culpados são muitos e já estão mortos;
2) olhar para o passado deveria servir para nos fazer aprender e, não, para nos martirizar ou nos envenenar com ele.

Realmente, o que ele sugere pode ajudar pais e crianças de pele mais escura a não se deixarem influenciar pela "carga negativa" que culturalmente foi associada à palavra "negro".
Eu, sem me dar conta disso, "resolvi" o problema de outra forma, há muitos anos, quando escrevi o texto "Negros de Verdade". Em lugar de mudar a palavra, eu a recheei de significados que as pessoas normalmente não conseguem ver.

Qualquer solução tem seu mérito específico, embora eu prefira a minha, claro.
Parte do que falarei a seguir serve para embasar a minha escolha.

A simples troca de uma palavra por outra, como Nabby sugere, é realmente muito mais fácil. As soluções mais fáceis são mais simples de serem implementadas, mas, como não exigem um entendimento tão amplo do problema por parte dos envolvidos, acabam não trazendo o amadurecimento psicológico e cultural que é tão importante por parte das pessoas que irão usá-las.

A "OFENSA" PODE EXISTIR SÓ NO MUNDO DO OFENDIDO

O que devemos evitar fazer é criminalizar (ou vilanizar) isso. O acordo sobre como tratar o outro deve ser feito sempre que for possível estabelecê-lo. Em algumas situações, é bem fácil fazer isso. Por exemplo, entre duas pessoas ou entre uma pessoa e um grupo que seja homogêneo com relação às expectativas de relacionamento verbal. As partes acordam a melhor forma de tratamento e a relação prospera sem maiores atritos. É o caso da mãe tratar o filho como "preto" e, não, "negro'; ou de duas pessoas que acabaram de se conhecer, quando uma delas gostaria de ser tratada por "senhora"; ou quando a gente se dirige, por exemplo, a uma classe de advogados ou médicos, que costumam exigir serem tratados como "doutores", tendo ou não feito um curso de doutorado.

Não vejo o menor problema, portanto, você chamar a outra pessoa de preta ou negra, exceto se você deliberadamente estiver fazendo isso para agredi-la. Chamo alguns amigos de "negão" de forma carinhosa. Mas a mesma palavra, "negão", pode ser usada de forma intencionalmente ofensiva ou depreciativa. E isso serve para uma gama enorme de palavras. Dependendo do contexto, das pessoas envolvidas e da relação existente entre elas, chamar alguém de "linda", "loira", "fofo" ou "brilhante" pode soar extremamente ofensivo para alguma das partes.

Uma plateia heterogênea já quase impossibilita qualquer acordo. Portanto, uma pessoa que se dirige às pessoas de tom de pele mais escuro como "negros" irá agradar os que querem ser chamados de "negros" e desagradar os que desejam ser reconhecidos como "pretos" ou "afrodescendentes". E muitos poderão se sentir ofendidos mesmo sendo o orador completamente inocente e bem intencionado. Isso porque a "ofensa" pode existir só no mundo do ofendido. Ela carece de contexto, mas não necessariamente de um ofensor.

É importante ressaltar que não estou tentando aqui diminuir a dor da pessoa que está se sentindo ofendida. Mas, sim, diminuir, ampliar ou até mesmo extinguir, em alguns casos, a culpa de quem supostamente a agrediu.

NÓS NÃO PODEMOS NOS APROPRIAR DE UMA PALAVRA

E isso me remete a outro problema cultural que, a meu ver, vem se ampliando nas últimas décadas, principalmente no Brasil, e que vou abordar apenas brevemente aqui. As palavras não têm um significado único, desconectado da fonte ou do emissor. Nós não podemos nos apropriar de uma palavra ou expressão e querer que a outra pessoa a use da forma como preconizamos no nosso manual de instruções escrito especificamente para ela. Esta é uma questão dramática que cria problemas extremamente desnecessários entre as pessoas. Palavras como "negro", "preto","racismo", "deus" e até "democracia", por exemplo, viraram propriedades de certos grupos de forma que, se você as utiliza de uma forma ou com um significado diverso daquele que consideram como correto, você, sumariamente, é reduzido a ignorante, na pior hipóteses, ou inimigo, em casos mais extremos.


NINGUÉM PODE FAZER VOCÊ SE SENTIR INFERIOR SEM A SUA PERMISSÃO

Sem me estender muito mais neste assunto, que merece uma publicação específica para ele, acho importante ressaltar que palavras são acordos firmados entre as pessoas.

E aí temos um grande problema.
A maior parte desses acordos foram firmados coletivamente, em grande parte das vezes de forma subliminar, ao longo da história. E, em geral, as pessoas não se dão conta disso. Principalmente quando elas se tornam servas das palavras que utilizam. O caso mais fácil de ilustrar talvez seja a palavra "deus", para a qual é fácil encontrar pessoas que não só se apropriam da palavra, como se tornam escravas dela.

Quando uma palavra tem um significado relativamente consensual, como "mesa", por exemplo, a comunicação é perfeita. Mas quando ela é usada como bandeira de alguma causa, ou na defesa de uma tese, torna-se importante entendermos que, antes de alimentarmos o desentendimento, vale a pena parar e verificar se ambos os lados entendem as palavras usadas do mesmo jeito. Se, para a pessoa com quem estamos discutindo, "mesa" é um animal de duas patas que voa, a primeira coisa a fazer é chegar a um acordo semântico. Se o outro não entende uma mesa da mesma forma que você, aponte para o objeto que você chamaria de "mesa" e decidam um terceiro nome para ele, digamos, "xpto". Uma vez que, para ambos, a  palavra "xpto" significa aquele mesmo objeto, a discussão pode, então, prosseguir sem problemas semânticos.

Esta incapacidade de desconectar uma certa palavra de um conceito único que se encontra (muitas vezes, difuso) em nossa cabeça ajuda a nos tornar escravos desta "conexão", achando absurdo que nenhuma outra seja possível.

Por conta disso, as palavras se tornam armas, também. Só que, diferente das armas físicas, elas não podem nos atingir sem a nossa participação.

Por isso, simplesmente mudar uma palavra não me parece uma atitude sustentável, embora possa ter efeitos imediatos surpreendentes. O melhor,mesmo, é criar nossas crianças para que não cresçam escravizadas pelas palavras. As palavras não são as coisas. Elas são apenas uma maneira de vestir um conceito que está em nossa mente para que o outro consiga enxergá-lo. O importante é o conceito por trás da palavra e, não, ela.

É preciso, portanto, sermos capazes de, assim como o dinheiro, olhar nos olhos das palavras e lhes mostrar quem é dono de quem.


Comentários

  1. Pois é, lembrei de varias palavras que poderiam servir como exemplo ao texto...palavras que remetem a crenças, à sexualidade...os mais variados tipos de questões que podem levar a conflitos e ofensas reais ou apenas imaginadas...a comunicação pode ser um campo minado, e acredito que só consegue se salvar quem tem muita humildade para reconhecer toda essa complexidade...valeu pelo vídeo e tb pelo texto.

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