Édie




Hoje eu saí da ilha pela primeira vez desde que me internei aqui em Paquetá há não sei quantos bilhões de eras passadas.

O comércio lá fora está bem mais preparado para lidar com a epidemia. Em metade das lojas há um funcionário na porta com álcool em gel praticamente obrigando o cliente a higienizar as mãos antes de entrar na loja. Em alguns supermercados, os caixas, além de máscara, contam com uma parede de acrílico entre a funcionária e o consumidor. O Mundial está limitando a quantidade de pessoas dentro do mercado. A fila em Botafogo tinha quase 100 metros pela calçada da Voluntários da Pátria.

Fui comprar um frango assado numa padaria em Copacabana e fui atendido pelo Édie (não sei se é escrito assim, mas o som é homófono ao pré-nome do humorista estadunidense). Édie mora na Rocinha. Perguntei a ele como está o transporte da sua casa para o trabalho. Ele me falou que vai trabalhar de metrô e que, no início (da pandemia) estava melhor, mas agora piorou bastante.

Sei que eu falo isso quase todos os dias, mas é mais para desabafar. Sei que estou pregando no deserto. Mas, do alto da minha santa ignorância, penso que a primeira medida a ser tomada numa cidade como o Rio de Janeiro deveria ser a humanização e higienização dos transportes de pessoas. Não consigo entender por que a aglomeração que incomoda é a das pessoas andando ou correndo solitárias na praia de Ipanema ou nos parques da cidade.

Será o Édie invisível aos olhos daqueles que podem ficar em casa? Sejam eles comunistas, capitalistas, lulistas, bolsonaristas, moristas, modistas ou moralistas?

Se o ônibus ou metrô foi limpo no terminal. Se nos horários de pico as pessoas atravessam a cidade sem precisarem tocar umas nas outras. Isso não parece ser realmente importante, apesar do transporte urbano portar, de uma só vez, um monte de variáveis que facilmente o elegeriam como o principal centro de atenção e cuidado num quadro de pandemia, tais como:

1) O transporte urbano carrega pessoas entre regiões bem distantes umas das outras, sendo um fator óbvio de difusão da doença.
2) As pessoas que trafegam neles são as que menos têm condições financeiras para enfrentar uma doença como esta, desde a aquisição de produtos de higiene até a manutenção de um plano de saúde.
3) As pessoas que trafegam nos ônibus e trens são exatamente aquelas que viabilizam o nosso privilégio de poder ficar em casa.

O interessante é que o Édie não reclamou. Ele falou como se fosse um fato normal da vida as condições em que ele vive serem solenemente ignoradas. Afinal de contas,

Reclamar para quê?
Para quem?

Quem iria dar ouvidos a ele se não consegue sequer enxergá-lo?
Isso seria coisa de louco.
Não?

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