Controvérsias sobre a MP que altera o Ensino Médio

Profissional com notório saber.

Pela MP 746 (redação de 22/9/2016), a contratação de profissionais com "notório saber" é só para a formação técnica. Sem esse requisito, realmente é bem difícil hoje promover formação técnica a um escopo tão grande de pessoas. O grande chef, o mestre de capoeira, o melhor torneiro mecânico ou o melhor DBA normalmente não têm licenciatura e NÃO irão tirá-la só para dar aula.

Mesmo assim, transformar uma escola nos moldes atuais em outra em tempo integral com a carência de professores que temos não é algo que me pareça simples de implementar.

E há necessidade de regulamentação que defina o que é um profissional de "notório saber" para evitar que qualquer um possa ocupar esses postos de trabalho?
É bem possível que sim. Sem qualquer regulamentação, qualquer um poderá ser considerado especialista em qualquer coisa,  e ocupará o cargo público amparado pela lei. Acontecendo isso, o Estado vira cabide de empregos e a Escola, além de não ajudar a melhorar o discente, pode contribuir para piorá-lo.  Acredito, portanto, que este seja um dos pontos fracos da MP.

A lista de pontos fracos - é claro - não para por aí...

  • A redução da carga horária para 1200 horas nas disciplinas da BNCC, que pode representar um impacto no acesso aos cursos de graduação (daqueles que optarem por continuar seus estudos, é claro),  é outro ponto preocupante. 
  • A falta de uma regulamentação mais detalhada sobre como dar-se-ão as implementações nos estados também pode ser um problema. Num primeiro momento, todos podem ficar congelados, sem saber direito o que fazer, até que as primeiras escolas em tempo integral apareçam. 
  • Ações de apoio à implementação da MP poderiam já estar previstas.
Se essa falta de regulamentação implicar autonomia para escolas e professores, o que parece um problema pode ser a nossa redenção, uma vez que  liberdade de decisão é ingrediente fundamental para se alcançar resultados maduros e sustentáveis em educação.

Saindo um pouco do escopo da educação técnica para descortinar esse horizonte do "notório saber", há uma iniciativa chamada "Ensina Brasil" que recruta profissionais de várias áreas para se dedicarem ao magistério, mesmo não tendo feito licenciatura. Eles recebem um treinamento de 5 semanas, que se estende por até dois anos. É uma mudança de paradigma que assusta quem relaciona "ter curso de pedagogia ou licenciatura" com "ser bom professor". Ser bom professor é uma mistura de (i)"conhecer bem os conteúdos", (ii)"ter prática em sala de aula" e (iii)"dedicação". O terceiro ingrediente(iii) você não consegue na universidade. Isso tem a ver com outros fatores que não cabe citar aqui. O curso de licenciatura nas boas universidades até é capaz de borrifar em você o (ii) e, para alguns disciplinas, o (i).  Além disso, pelo menos para os níveis acima do primeiro segmento do nível fundamental, não adianta entrar em sala se você sequer domina o conteúdo a ser ministrado. Portanto, utilizar um profissional que já possua o item (i) e que esteja motivado (que é o esteio do item iii) é bem mais de meio caminho andado para e ter um bom professor.

O curso de pedagogia no Brasil, salvo raríssimas exceções, só atrapalha; a melhor maneira de aprender, mesmo, é com a prática supervisionada, que parece ser  proposta do Ensina Brasil (http://www.ensinabrasil.org/ ).

Vale ressaltar também que os melhores cursos preparatórios para vestibular contam - e sempre contaram - com pessoas com "notório saber". Eu dei aulas em vários cursos durante muito tempo sem sequer estar graduado. Há um caso clássico (o Ralph) que foi professor de matemática dos melhores cursos pré-vestibulares mesmo antes de se graduar e, depois de graduado, sem ter licenciatura.


Ensino Fundamental X Ensino Médio

Qualquer discussão em torno do tema "reforma do ensino" carece de um entendimento objetivo do que ele é e do que ele não é, comparando-o, por exemplo, como Ensino Fundamental.
E não há o que discutir, pois as características de cada um deles estão na LDB.
Quanto ao ensino médio, a LDB ( http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm ) diz:

Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades: 
I - a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos;
II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;
III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;
IV - a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina;
Ou seja, não tem o menor sentido pensar em "educação de nível médio" sem falar em educação profissional.

Ensino Médio

O ensino médio como está hoje é um fiasco. Na tentativa de preparar o aluno para tudo, não raro, não se prepara o aluno para coisa alguma. As boas escolas técnicas (CEFET e IFRJ, por exemplo) são as que possuem melhores resultados, a meu ver, pois produzem bons profissionais de nível médio e, se eles quiserem se especializar mais, estarão  a poucos passos da universidade .

O produto final de ensino médio sem qualquer profissionalização costuma ser um jovem de 18 (ou mais) anos [maior de idade, prestes a formar uma família, se já não o fez] sem ter a menor ideia de como conseguir o seu próprio sustento. Isso, para uma família de classe média/alta, pode não ser tão ruim, mas para a maioria das famílias do país, é um problema difícil de equacionar.

Com o "segundo grau", muitas portas se abrem. Você pode ser vendedor em shopping, estudar para concurso, auxiliar de escritório, recepcionista em consultório médico, trabalhar na rede de hotelaria em serviços administrativos etc. Ou você pode fazer graduação e ser doutor.

Se, além do "segundo grau", você tiver uma profissão, as mesmas portas se abrem, uma vez que, em nenhuma das opções citadas (exceto possivelmente seguir para o curso superior), a empresa que te contrata quer saber se você passou bem em física, química, artes ou sociologia. O empregador só quer alguém com os conhecimentos que deveriam ter sido adquiridos no ensino fundamental. Mas, como o ensino fundamental está muito ruim e a oferta de mão de obra é muito maior do que a oferta de vagas, o nível médio passa a ser o requisito mínimo para esses postos de trabalho.

Se, em contrapartida, você terminou o "segundo grau" e é um bom pedreiro ou um bom eletricista, você não precisará mendigar um emprego. Você poderá prestar serviço aos vizinhos e, quando menos esperar, terá o seu ganha-pão sem descartar a hipótese de poder se candidatar a um emprego só que, agora, em condições de barganhar melhor salário e melhores condições de trabalho; pois aquele emprego não será mais a sua única opção!

Ou seja, libertadora, mesmo, é  uma escola que dê a você condições de ser seu próprio patrão ou, se escolher ser empregado, de ter condições mais justas de disputar o seu emprego. E não uma escola que te deixa como única opção (além das que que você já teria se tivesse um bom curso fundamental) fazer mais 5 anos de curso superior.

Curso superior NÃO é para todo mundo!

Sim. Assim como não é para todo mundo ser empresário, funcionário público ou político.

Mesmo tendo condições financeiras favoráveis, muitos não terão paciência ou determinação para enfrentar 5 anos (pelo menos) de graduação. Principalmente se, após a graduação, as suas perspectivas salariais não forem muito melhores do que aquelas que você já possuía ao concluir seu ensino médio. Outros simplesmente preferirão seguir por outro caminho, por exemplo, sendo DJ em festas, ou modelo fotográfico, ou cozinheiros.

Pode parecer terrível para alguns, mas não há nada de absolutamente terrível em não ter um curso de graduação. O terrível é, por não ter um curso de graduação, não lhe sobrar outra alternativa a não quer ser balconista de uma loja no SAARA.

Pensamento Crítico X Sociologia e Filosofia

O "problema" é que a LDB prevê o "o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;".

Essa pequena frase dá asas à imaginação e funciona mais ou menos como dizer que devemos promover "a paz entre os seres". Com isso, a cada dia, mais e mais disciplinas tornam-se candidatas a entrar no currículo de nível médio, fazendo com que o aluno tenha mais coisas para decorar, mais provas para fazer e mais raiva por não ver a tão prometida utilidade nos conteúdos que lhe enfiam goela a dentro.

Sociologia pode ajudar? E Filosofia? E Artes? Na Argentina tem Cinema no ensino fundamental!

Sim... Todas essas matérias podem ajudar. Mas também pode ser muito (ou muito mais) útil para os mesmos fins, fundamentos de direito constitucional, tributário e trabalhista ou fundamentos de economia, por exemplo.

Se pudesse determinar qual disciplina - dentre as opções citadas - seria obrigatória no Ensino Médio dos meus filhos, eu certamente não escolheria Sociologia, nem Filosofia, nem Artes, por maior que seja o respeito que tenho por cada uma delas.

Além disso, certamente faria um bem enorme para o educando a prática de, periodicamente, lavar os banheiros da escola, ajudar a separar o lixo ou deliberar sobre assuntos de seu interesse dentro da comunidade. E essas práticas não são necessariamente uma disciplina a ser ministrada.

Surge então a questão:
Como produzir jovens/profissionais que possuem pensamento crítico e que tenham autonomia intelectual, como preconiza a LDB?

Mas, antes disso, por incrível que pareça, precisamos saber se todos entendemos da mesma forma o que é essa coisa chamada "Pensamento Crítico". Muitas pessoas (professores, inclusive) acreditam que pensar criticamente é ser anticapitalista ou antiMarxista. É comum encontrar profissionais de magistério que acreditam que expor ao aluno repetida e demoradamente a sua forma particular de ver o mundo é ajudá-lo a pensar criticamente.

Segundo Daniel T Willingham ("Critical Thinking. Why Is It So Hard to Teach?"), pensamento crítico tem a ver com raciocinar, fazer julgamentos, tomar decisões e resolver problemas. Segundo ele, decidir ler este texto não é pensamento crítico (apesar de envolver decisão), mas cuidadosamente pesar as evidências apresentadas de forma a acreditar ou não no que ele diz é pensamento crítico. Pensamento crítico tem a ver com conseguir lidar com a novidade, em ser efetivo (evitando as armadilhas que aparecem  pelo caminho) e auto-orientação. Resolver um problema complexo de física aplicando um algoritmo já conhecido não é pensamento crítico. Mas desenvolver um novo algoritmo é. Pensamento crítico exige auto-orientação. Quanto maior a interferência do professor, menos crítico é o pensamento. (O grifo foi meu.)

O pensamento crítico nada mais é do que uma forma de podermos identificar os argumentos ou alternativas que devemos considerar como válidos. O pensamento criativo nos possibilita encontrar alternativas além das que nos são fornecidas.

Em outro documento, "Teaching Csritical Thinking, Ssome Lessons from Cognitive Science.", de Tim van Gelder, lê-se (tradução, minha):

Para os alunos melhorarem [seu raciocínio crítico], eles devem se engajar no pensamento crítico. Não é o suficiente apenas "aprender sobre o pensamento crítico". Muitos professores universitários parecem ignorar este ponto; eles ensinam um curso sobre a teoria do pensamento crítico e assumem que seus alunos vão acabar pensadores mais críticos. Outros professores cometem um erro semelhante: eles expõem seus alunos a exemplos de bons pensamentos críticos (por exemplo, fazendo-os ler artigos de filósofos profissionais), esperando que os alunos aprendam por imitação. Estas estratégias são quase tão eficazes quanto exercitar o seu tênis assistindo ao torneios de Wimbledon. A menos que os estudantes estejam ativamente pensando por eles mesmos, eles nunca irão melhorar.
Ou seja, se essas ideias não são estapafúrdias para você, você concordará comigo que precisamos colocar um ponto final neste círculo vicioso e iniciar o mais rapidamente possível um círculo virtuoso em que professores encontram formas cada vez mais arrojadas de promover em seus alunos (assim como neles mesmos, identificando e corrigindo as falhas) o pensamento crítico previsto na LDB e tão almejado por todos.

E isso não significa demitir os professores de sociologia e filosofia! Eles podem e devem continuar na rede. Mas precisam fazer parte de um processo mais amplo, com projetos multidisciplinares e que certamente ficarão muito mais completos e eficientes com o conhecimento técnico e teórico de cada um deles.

Mas para isso acontecer, precisamos reconhecer que nossa escola está em coma! E precisamos achar caminhos, independente de ações governamentais, para ressuscitá-la.

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